Negro drama
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas
Inveja, luxo, fama
Você já ouviu falar no Complexo da
Maré, não é? Um bairro que integra diversas comunidades da Zona Norte do Rio de
Janeiro. Na Maré, mora gente que batalha duro todos os dias para levar comida
para dentro de casa. Favelas que formam caráter e que transformam a vida de
qualquer pessoa.
Foi na Maré que aprendi a ser
homem, parceiro.
Para quem vive na favela, ganhar o
mundo é fichinha. Lá você entende que o mundo é para quem sabe viver. Eu vi
muita gente se perder na droga, no tráfico, na vida de bandido. Já dormi e
acordei ouvindo troca de tiros pela janela do quarto. Cansei de ver a polícia
invadir o morro para caçar traficante. A malandragem era o drible que os
moleques davam nos problemas. Muitos ficaram no meio do caminho.
Sempre fui bem sossegado. Meus
pais nunca deixaram faltar o arroz e feijão de cada dia, apesar de não termos
nenhum tipo de luxo. E nem precisava, sinceramente. Bastava uma bola para a
gente fazer a festa. A velha pelada no Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro,
Marcílio Dias, Parque União, Praia de Ramos. Um mergulho no piscinão e um
sorvete na praça. O mundo estava feito.
Ainda moleque, me mudei para a
Vila Kennedy. Longe viu, parceiro? Saí da Zona Norte para a Zona Oeste, ali
pertinho do clube do Bangu. Os problemas eram os mesmos de sempre, e as
soluções sabíamos de cor.
Encarar o drama, lógico.
Periferias, vielas e cortiços
Você deve estar pensando
O que você tem a ver com isso
Vou avançar no tempo para você
entender.
Morei na China por dois anos.
Joguei no Guangzhou Evergrande, um dos maiores times do país. Uma cultura
totalmente diferente da nossa. Lá, a adaptação é difícil e o futebol ainda
engatinhava quando fui contratado, em 2014. O nível não é igual ao do Brasil.
Me lesionei e fiquei um tempinho parado.
Nesse período, rompi com meu
empresário. Eu achava que precisava dar um rumo diferente à minha carreira.
Esse cara, talvez sem aceitar minha decisão, começou a me difamar no Brasil.
Espalhava para os clubes interessados em mim que eu era um jogador “bichado”, e
que não iria mais atuar em alto nível. Sacanagem, para não dizer outra palavra
mais pesada.
Quando voltei da China, tive umas
cinco propostas de clubes brasileiros. Só que as informações que eles tinham de
mim eram as piores possíveis. Esse empresário tratou de manchar um currículo
que foi construído com muito suor. Nunca pisei em ninguém para conseguir minhas
coisas, e por isso me sentia o maior injustiçado do planeta.
Sente o drama
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança
Sempre fui um cara que não
precisava dar resposta pra ninguém. Como diz Mano Brown, dos Racionais MCs, “o
fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar”.
Vamos voltar para a Vila
Kennedy...
Minha vida no futebol sempre foi
jogando em favelas. Nunca tive a chance de ser formado numa divisão de base.
Meu negócio era se divertir, até que a parada ficou bem séria depois que
completei 16 anos.
Uns olheiros me viram jogar no
terrão e me levaram para o time da faculdade Estácio de Sá. Foi minha primeira
experiência com um futebol mais organizado, saca? Tinha hora para treinar, hora
para comer, nutricionista, médico, fisioterapia. Outro mundo.
Um ano depois, fui jogar no
Madureira. Continuava morando na Vila Kennedy, e a violência só aumentava. Você
acredita que faltei a um treino por causa de um tiroteio na favela? Não tinha
como sair de casa, irmão. Deitava no chão com medo de receber uma bala perdida.
Eu já tinha 20 anos, e minha realidade ainda era a de muitos outros moleques
que tentavam uma vida melhor. Eu não poderia morrer sem tentar.
O Madureira me ajudou a conhecer
outro mundo, longe das favelas do Rio. Fui para Santa Catarina, depois Minas
Gerais, Pernambuco e interior de São Paulo. Parei em Campinas. A Ponte Preta,
clube tradicional no Brasil, queria contar comigo. Fui muito feliz na Macaca. O
tempo passava e as coisas só melhoravam. Quando dei por mim, estava no Santos
de Neymar.
São poucos
Que entram em campo pra vencer
A alma guarda
O que a mente tenta esquecer
Tudo o que faço na minha carreira
é pensando na minha família. Parceiro, eu conheci minha mulher com 16 anos.
Como não dar valor? Ela esteve comigo em todos esses perrengues. Temos duas
filhas maravilhosas, fruto de um amor que é maior que qualquer final de
campeonato.
E vamos para a China.
Ganhamos a Super Liga com o
Guangzhou duas vezes. Mesmo sendo volante e sofrendo com o rigor tático dos
chineses, guardei uns golzinhos por lá. Para quem jogou nos terrões da favela,
estar do outro lado do mundo era mole, mole. Que mané dificuldade, rapaz!
Negócio ruim é se esconder de tiroteio.
Acabei me lesionando. Fiquei de
fora do time por várias e várias semanas, no mesmo período em que aquele cara
começou a espalhar inverdades no Brasil. A Ponte Preta foi a única que
acreditou em mim, e foi para Campinas que escolhi voltar.
Olho pra trás
Vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado
E quem só fico na bota
Eu sabia que seria difícil recuperar
meu espaço, já que a Ponte estava bem arrumadinha com Eduardo Baptista. Aceitei
reencontrar o professor Guto Ferreira no Bahia e recomeçar de vez minha
carreira no Brasil. O caminho é duro, mas eu sabia que, na hora certa, iria
render o que esperavam de mim.
Pô, o Guto é um cara nota mil.
Sabe tratar um atleta como poucos treinadores sabem. Já me conhecia desde os
tempos da Ponte. Cheguei a Salvador e, em pouco tempo, já me sentia em casa.
Também pudera... essa cidade lembra em muitas coisas o meu Rio de Janeiro.
Mesmo com todo o caos, é encantadora.
O Bahia é um time foda.
Levar esse clube de volta para a
Série A era o mínimo que eu poderia fazer para retribuir tudo o que eles
fizeram e fazem por mim. Dei a volta por cima. Ganhei confiança dos companheiros
e carinho de milhões de torcedores. Aquela pessoa deve estar com a língua toda
queimada, não é não?
Volto um pouco no tempo e me
lembro de maio de 2017. Fonte Nova lotada. A torcida do Bahia é fora de série,
cara. Do outro lado, o Sport, outro time grande. Era a final da Copa do
Nordeste e eu estava prestes a conquistar o meu título mais importante no
Brasil. Quando Edigar Junio fez 1 a 0, já sabia que ninguém tirava aquele
título da gente. O torcedor tricolor não iria deixar.
Saí de campo aos 19 minutos do
segundo tempo. Guto ficou preocupado com a arbitragem, que já tinha expulsado
um jogador deles. Como eu levei um cartão amarelo, ele colocou Juninho no meu
lugar. O professor não sabia, mas ele havia me dado um presente.
Ouvir a Fonte Nova abarrotada de
pessoas gritando o seu nome não tem preço, parceiro.
Que Deus me guarde
Pois eu sei
Que ele não é neutro
Vigia os rico
Mas ama os que vem do gueto
O juizão apitou o fim do jogo, e
eu chorei. Nem pensei em quem quis o meu mal. Na minha cabeça só vinha a minha
preta e as crianças. São por elas que dou a vida em todas as divididas. São por
elas que tenho que correr e dar orgulho. Falador, você já sabe, né? Passa mal.
Eu já me considero um vencedor
nesse mundo tão cruel. Vesti a camisa do Bahia com prazer e dedicação, dou
orgulho para minha família e amigos, e continuarei seguindo firme nesta vida de
grandes emoções.
Mas aê,
Se tiver que voltar pra favela
Eu vou voltar de cabeça erguida
Porque assim é que é
Renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé
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